Por Pr. Aurivan Marinho
A igreja evangélica tem
sido constantemente penalizada por divisões, rachas e cismas. A intolerância, a
falta de amor e a luta pelo poder são possivelmente as causas mais recorrentes
dessa tragédia. Existe na cultura evangélica atual uma grande dificuldade de
doação em torno de projetos institucionais, corporativos e coletivos. A forte
ênfase que se dá ao sucesso pessoal tem promovido lideranças personalistas e
antidemocráticas. O resultado disso é que a todo tempo assistimos perplexos o
surgimento de novas igrejas ou grupos eclesiásticos, cuja origem dar-se no
interior de corações arrogantes, competitivos, intolerantes e carnais.
O
Espírito de “Babel” (Gn 11.1-11) impera na cultura pragmática do pós-modernismo.
Trata-se de uma cultura fragmentária, onde a igreja, a doutrina, a família e
demais instituições são transformados em pequenos fragmentos e sacrificados no
altar do “eu quero”, “eu acho”, “eu posso”. A centralidade do eu corrói como um
cupim os verdadeiros pilares da fé cristã. O império do “eu” se legitima em nome
do êxito pessoal, da prosperidade material e do endeusamento do próprio
nome.
Nesse contexto em que a ética e a moral são o que menos importa
para muitos, a igreja é usada como meio de favorecimento pessoal, o evangelho é
negociado nos balcões da fé e a credibilidade e a reputação dos líderes ocupa as
piores colocações nas pesquisas de opinião pública. O Espírito de Babel não
consegue produzir nenhum projeto que não resulte em confusão. Babel se encontra
naturalmente debaixo da sentença do juízo divino. O Espírito de Babel é
insensível, insensato e demasiadamente egoísta. Babel é maldição, tudo que põe a
mão termina em divisão.
A igreja tem o dever de contrariar essa cultura
mundanista vivendo a cultura do reino de Deus. Precisamos ser manso e humilde de
coração, devemos considerar o outro superior a si mesmo, necessitamos promover a
unidade na diversidade. Se queremos preservar a unidade é preciso que
consideremos as diferenças sem demonizá-las. As diferenças existem e, por isso
mesmo, o amor, a misericórdia e o perdão são tão essenciais na construção e
preservação dos relacionamentos. Os fundamentos da unidade são mais fortes do
que os pontos que tentam nos separar. Afinal, “há somente um corpo e um
Espírito... há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de
todos, o qual é sobre todos, age por meio de todos e está em todos” (Ef 4.
4-6).
Gostaria de considerar a visão bíblica de unidade a partir de
quatro aspectos, através dos quais poderemos superar quaisquer
diferenças.
1. A unidade do Espírito – Quando penso no
mover do Espírito no seio da igreja, penso em quebrantamento, vida piedosa e
corações contritos. É somente pelo poder do Espírito que nos despojamos de nós
mesmos, renunciamos o nosso próprio eu, relativizamos as nossas vontades, nos
colocamos no lugar do outro e baixamos as nossas armas. Não acredito na unidade
promovida pelo homem. Tudo que vem do homem é carnal, é motivacional ou
essencialmente corrompido. A verdadeira unidade representa uma expressão da
espiritualidade bíblica, que só o Espírito de Deus pode produzir na experiência
cristã. Só pelo Espírito o eu é descentralizado e o governo de Deus efetivado
nos corações. A unidade é requisito para o aviva-mento, e avivamento transforma
partidos divergentes em ajuntamento solene e comunitário. Por isso, devemos
atentar para a exortação bíblica: “Esforçando-vos diligentemente por preservar a
unidade do Espírito no vínculo da paz” (Ef. 4.3).
2. A unidade
doutrinária – A doutrina é o cimento que une os membros da igreja. A
unidade emana da identificação existente entre aqueles que desfrutam da mesma
identidade. Na igreja primitiva a unidade, a comunhão e o partir do pão são
referendados como frutos de uma mesma experiência: “Perseveravam na doutrina dos
apóstolos” (At 2. 42). A doutrina é ao mesmo tempo o elemento que une os
discípulos de Cristo e os diferenciam das multidões e falsas religiões. Não
podemos, em nome da unidade, sacrificar a doutrina. Qualquer ecumenismo
religioso que atribui à doutrina um caráter secundário é nocivo à saúde da
igreja. Por outro lado, a defesa da doutrina não pode ignorar a importância da
unidade. Daí porque os que defendem, falam e pregam a verdade, o façam com amor.
A intolerância, e a intransigência desembocam em sentimentos odiosos e
posicionamentos legalistas que comprometem a boa comunhão. O centro da doutrina
cristã é Cristo. Se queremos que os homens o enxergue como o enviado de Deus,
que, então, sejamos um (Jo 17. 23).
3. A unidade do
corpo – Se a igreja é o corpo de Cristo e Cristo o seu cabeça, isso faz
de nós naturalmente membros uns dos outros (I Cor. 12.26-27). Quem promove
divisão na igreja não está simplesmente atingindo uma instituição ou
estabelecendo uma nova organização eclesiástica (igreja, ministério ou
denominação), está, sim, ferindo o corpo de Cristo. Como diz Calvino “quando os
membros estão divididos, o corpo sangra”. Enquanto a igreja se divide pelas
razões mais banais e infantis possíveis, o corpo padece e sinais de fraqueza se
evidenciam no cumprimento da missão.
O modo mais bíblico e inteligente de
mantermos a unidade do corpo é reconhecendo que o único cabeça é Cristo e que
cada membro tem uma missão particular dada por Deus visando à edificação do
todo. Não podemos criar uma guerra entre os dons. Cada dom tem seu valor e quem
o recebe deve exercitá-lo com temor e zelo. Todos os dons são úteis, pois provém
do Espírito Santo (I Cor. 12.7). Os dons são diferentes e distribuídos a pessoas
diferentes visando à unidade e diversidade do corpo (I Cor. 12.28-31). Isso
significa que eu não tenho que divergir com meu irmão nem desdenhar dele pelo
simples fato de que Deus o usa de um modo diferente. Nem todo mundo é olho, boca
ou mão (I Cor 12.14-20). Nenhum membro concentra a totalidade das virtudes do
Espírito. Precisamos uns dos outros e a igreja precisa de todos para se manter
saudável e relevante.
4. A unidade trinitária – O
modelo de unidade que queremos para igreja não pode ser produzido pela mera
experiência humana. A verdadeira unidade é uma obra do Pai, do Filho e do
Espírito Santo na vida de pessoas, que de outro modo, jamais poderiam desfrutar
da comunhão bíblica. O Deus Trino que opera na vida da igreja se apresenta como
modelo comunitário ideal: “Que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim, e eu
em Ti, também sejam eles em nós; para que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo.
17.21). A nova vida que a igreja desfruta é uma obra do céu. A vocação da igreja
é o céu e o modelo de unidade vem do céu.
A unidade é uma experiência que
transcende as tendências culturais e as vaidades do coração humano. A unidade
que se projeta na Trindade rompe barreiras, quebra preconceitos e se evidencia
na experiência do amor e do perdão. Ser igreja é se comprometer em transcender a
mesmice de uma cultura odiosa, egoísta e perversa, no propósito de promover na
Terra a comunidade divina.
É dever de cada crente e de cada líder
preservar a unidade da igreja. Lutar pela comunhão é tarefa de todo aquele que
ama o Senhor da igreja e que deseja ser instrumento nas mãos do Espírito para
edificar a Igreja do Senhor. Que o Senhor gere em nossos corações a harmonia que
precisamos para que sejamos mais relevantes. Que nenhum espírito de divisão
encontre lugar para operar em nosso meio. Que a longanimidade e benignidade
sejam virtudes bem presentes em nossas motivações e ações.